segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Cantiga de enganar

Drummond me ensinando a levar:

"O mundo não vale o mundo, meu bem.
Eu plantei um pé de sono,
brotaram vinte roseiras
Se me cortei nelas todas
E se todas se tingiram, 
De um vago sangue jorrado,
Ao capricho dos espinhos,
Não foi culpa de ninguém.
O mundo,
Meu bem,
Não vale
a pena, e a face serena,
vale a face torturada.
Há muito aprendi a rir
de que? de mim? ou de nada?
O mundo, valer não vale.
Tal como sombra no vale
a vida baixa...E se sobe
Algum som deste declive,
não é grito de pastor,
convocando seu rebanho.
Não é flauta, não é canto,
de amoroso desencanto.
Não é suspiro de grilo,
voz noturna das nascentes,
não é mãe chamando filho,
não é silvo de serpentes
esquecidas de morder
como abstratas ao luar.
Não é choro de criança
para um homem se formar.
Tampouco a respiração
de meninos e de enfermos,
de soldados marchando,
ou de feiras em clausura.
Não são grupos submergidos
nas geleiras do entresonho
e deixem desprender-se,
menos que simples palavra,
menos que folha de outono,
a partícula sonora
que a vida contém, e a morte
contém, o mero registro
da energia concentrada.
Não é nem isto nem nada.
É som que precede música,
sombrante dos desencontros,
dos fortuitos encontros,
dos malencontros e das
miragens que se condensam,
ou que se dissolvem noutras
absurdas figurações.
O mundo e suas canções,
de timbre mais comovido
estão calados, e a fala
que de uma para outra sala
ouvimos um certo instante,
é silêncio que faz eco
e que volta a ser silêncio,
no negrume cirundante.
Silêncio: que quer dizer?
O que diz a boa do mundo?
Meu bem, o mundo é fechado,
se não for antes vazio.
O mundo é talvez, e só.
Talvez nem seja talvez.
O mundo não vale a pena,
mas a pena não existe.
Meu bem, façamos de conta,
de lembrar e de olvidar,
de lembrar e de fruir,
de escolher nossas lembranças
e revertê-las, acaso
se lembrem demais em nós.
Façamos, meu bem, de conta
-mas a conta não existe-
que é tudo como se fosse,
e que, se fora, não era.
Meu bem, usemos palavras.
Façamos mundo: idéias
Deixemos o mundo aos outros
já que o querem gastar.
Meu bem, sejamos fortíssimos
- mas a força não existe -
e na mais pura mentira,
do mundo que se desmente,
recortemos nossa imagem,
mais ilusória que tudo, 
pois há maior falso,
que imaginar-se alguém vivo
como se um sonho pudesse
dar-nos o gosto do sonho?
Mas o sonho não existe.
Meu bem, assim acordados,
assim lúcidos, severos
assim abandonados,
ou deixando-nos a deriva,
levados na palma do tempo
-mas o tempo não existe-
Sejamos como se fôramos,
num mundo que fosse: O Mundo."

Nenhum comentário:

Postar um comentário